sábado, 23 de julho de 2016

RESENHA DE APRENDIZAGEM CINZA, PELO JORNALISTA JESSE NAVARRO



POESIA

São Paulo a sangue frio na estreia de Leandro Rodrigues

Por Jesse Navarro

“Aprendizagem Cinza” (Editora Patuá, 2016) é o livro de estreia do poeta paulista Leandro Rodrigues. Trata-se de um conjunto de poesias que mostram o lado realista e denso da capital de São Paulo. Uma verdadeira viagem sangrenta e real pelos cantos da cidade mais rica do Brasil. O livro já começa com o misterioso título “São Paulo IX”, Concretismo puro.
Em “São Paulo IX”, Leandro Rodrigues roteiriza o que nunca seria dito por um apresentador de programas policialescos, apesar do assunto ser um crime passional. É mostrada uma visão de quem está atrás das lentes em ritmo de cinema noir.
Em “Astraçã”, vemos um show de vogais que não são apenas vegetativas. São vogais que mostram aquela capital do turista (francês, será?), aquele que usa uma bússola e morre. Em cada verso se faz presente a arquitetura pós-moderna que só São Paulo tem. Prédios triangulares, assimétricos,  ruas escuras onde o cotidiano mostra sua face: decomposta, criminosa, real como só o sangue de um poeta pode ser.

É uma São Paulo onde até Bukovski aparece. Ele mesmo, o norte-americano velhaco, o famoso poeta das mil garrafas de Bourbon. Na poesia, o gênio vomita e enfrenta o aço de Sampa. Temos aqui uma linguagem não-linear, onde o cinza do título mancha todas as ruas da cidade em pleno século XXVIII. Vira chumbo, lixo, miséria, uma realidade cinzenta como nem o mais pessimista poderia imaginar. A chacina prossegue em “São Paulo V”: aquele mesmo sangue que os mais velhos espremeram nas antigas páginas do jornal Notícias Populares.  O poeta se indigna diante um crime passional e entrega o que chama de linguagem publicitária. Os números vão crescendo ao mesmo passo do lixo, da miséria, da hecatombe visionária. O poeta insatisfeito  aumenta o caracter da letra, dando o efeito visual que desconstrói o sangue reciclado. Os rios Pinheiros e Tietê são desmascarados como desova de defuntos, um cenário onde o velho Buk, o bêbado escritor, certamente pensaria em se jogar, bradando: “preciso resgatar minha garrafa!”.

A poesia que puxa para a antiga forma de Literatura é justamente onde o poeta se enterra: “Soneto à cidade de São Paulo”.  Não satisfeito na condição de morto, ele dança com defuntos numa perigosa valsa que não perdoa nem Mário de Andrade. E quem será o Urubu-Rei que voa entre escombros, farpas e estilhaços? A cidade dos travestis que têm faca entre os dentes, cortando a noite em mil palavras. Então temos mais do que a modernidade, temos os primórdios do século XX em São Paulo de 1937, 1910, 1915 (a melhor peça do livro, que dá voz aos cavalos), até o sangue impiedoso nas roupas do varal de 1918.
Não se trata de obra recomendável para deprimidos: é veneno que escorre pela boca, sangue que esparrama até no poema da tarde, um caleidoscópio onde podemos ver Lorde Byron, Zé do Caixão, Buñuel, todos esqueletos nas ondas do mar. Hilda Hilst aprovaria esse livro, certamente colocaria na sua estante entre os favoritos. Eis uma poesia gótica, misteriosa, profunda, enigmática, sangrenta, terrível. Rara na atual geração.

Até Drummond é revisitado, sempre gauche. O anjo é o próprio poeta que não dá a mão para si mesmo no espelho, apenas franze a testa. Tão surreal quanto o barulho de um jasmineiro que, pasmem, “no seu barulho aponta um cifrão”. Não falta também o lado musical de Leandro: a letra “Memória dissoluta” fez parte da sua passagem por bandas importantes nos anos 90, como Onírico e Redator S/A.

Difícil escolher a melhor poesia, mas certamente “Semiótica” vai além do conceito de Marshall McLuhan. Não temos aqui nem o meio, nem a mensagem. Temos um par de olhos dentro do mais surreal dos copos da Língua Portuguesa.  O livro que ficou na estante passa a assombrar o “homem de papel”. O habitante da bruta capital, perdido em becos, uma hora vai até os rios. E até lá acha a morbidez de mortos afogados que continuam nadando. Há também espaço para pássaros, raras figuras que não sangram em “Aprendizagem Cinza”. O poeta, que é um professor da Língua Portuguesa, mostra habilidade verbal em “Vapor Barato”, título que alude a famosa música de Jards Macalé e Waly Salomão: “Lentas horas / só meu coração / e va po ra”.

“A golpes de martelo” ficou consagrada no programa “Estúdio Blen Blen Entrevista” na internet. Um piano segue o compasso da narração, a poesia concreta se assume no estilo que consagrou os irmãos Campos e Décio Pignatari nos anos 50. “Aprendizagem Cinza”, o livro, é uma estreia pesada, realista, sem gracejos ou romantismos. Além de ser boa leitura, é também uma aula para novos poetas. Que venha o novo.  











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